terça-feira, 29 de março de 2011

Universidade brasileira e democracia

Luciane Soares

Entre os índices de desigualdade brasileiros, o acesso ao ensino público de qualidade aparece como gerador de grandes polêmicas. Isto porque envolve movimentos sociais, profissionais da educação, alunos, pais, mídia e agentes importantes, incluindo entre os últimos o pernambucano Luiz Inácio Lula da Silva e o paulista Antônio Ermírio de Moraes, presidente e membro do conselho de administração do Grupo Votorantim. O assunto interessa a toda a nação, por razões evidentemente muito distintas, como podemos perceber, lendo a lista acima.

Argumentos são sacados para a discussão que tende a ser feita em bases por vezes precipitadas. Nos últimos dois anos, a comunidade acadêmica tem se dividido em frentes favoráveis e contrárias as cotas. O que tem gerado inimizades, rompimentos, livros, listas de assinaturas, blogs, brigas públicas, reuniões. Eventos que transcendem a questão de acesso ao ensino superior, focando a existência ou não de racismo no Brasil. Pois, para muitos, raça é atualmente, um conceito dispensável. Portanto, por que reserva de vagas?

Creio, como muitos outros pesquisadores, que socialmente, raça é um operador cotidiano de identificação poderoso. Convido todos a refletir sobre Obama e o significado de sua eleição. Alguma dúvida?

Se não se pode mais falar em raça, parece que o que existe é uma paranóia de movimentos sociais rancorosos e revanchistas, como afirmou um professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) em artigo recente sobre o ensino de História da África nas escolas.

Este fato me faz lembrar da crise de choro de uma avaliadora de importante agência de fomento à pesquisa no país que, diante da indagação de um professor de Lisboa (curioso por nossa Universidade) não conseguia explicar aos presentes por quais razões, no Brasil, os negros eram praticamente inexistentes nas universidades.

A discussão corajosa e por vezes solitária que o professor da Universidade de Brasília (UnB) José Jorge de Carvalho tem feito, colabora para pensar sobre o caso. Dos universitários brasileiros, 96% são brancos.

Poderíamos problematizar como estas classificações são feitas. Mas é desnecessário. Basta pensar na configuração racial dos cursos de Engenharia, Direito, Arquitetura e Medicina. Mesmo que fosse possível dizer, abraçados a Gilberto Freyre, que no Brasil só há morenos, é inegável que existe sim, homogeneidade racial nas Universidades. Em toda minha graduação não tive a oportunidade de conviver com colegas negros.

A sutileza dos sobrenomes sempre foi cruel. Assim como os rituais de humilhação impostos quando a discussão de mérito era critério para aprovação em concursos públicos (parcialmente públicos, parcialmente secretos e obscuros).

Como não se pode falar do que não existe, ocorre a perpetuação destes rituais. No mestrado, a mesma distribuição: em dez alunos, apenas uma era negra. O que dizer diante de uma história sobre "aquela empregada doméstica negra que foi despedida porque comeu um pedaço de bolo"? O que fazer diante de uma banca de avaliação que não sabia explicar por que um aluno, com notas superiores a 8,5 na prova aula, na entrevista e no currículo ocupa um pífio quinto lugar em um concurso para professor? Tendo notas superiores aos demais candidatos. Questão de mérito? Falta de qualificação? Não seria justo, uma vez que os avaliadores bocejavam durante a prova aula. Para quem narrar estes fatos "fantasiosos e rancorosos"? Poderia alguém dizer que trata-se de uma paranóia? Não creio.

Acredito que a discussão sobre cotas explode com este silêncio universal que em seu caráter falsamente democrático, apenas perpetua poderes há décadas estabelecidos. Quanto ao argumento de "baixar o nível" com a entrada de alunos pobres e negros, convido toda a sociedade civil brasileira a investigar o conhecimento que se tem produzido nas teses, dissertações e artigos.

Creio que se alguém quiser seguir empunhando a bandeira da excelência acadêmica e do mérito, deverá analisar com seriedade o que tem se plasmado como interesse científico nos centros de pesquisa universitária. Verá logo que este argumento é falacioso. Há muito não é possível produzir como se deveria para, de fato, exibir esta excelência.

A obrigatoriedade da produção de artigos (por vezes repetidos em 10 revistas científicas), o sucateamento do serviço público, a falta de investimentos sérios em educação, isto sim, faz despencar o nível de qualquer instituição. Colocar esta culpa e este estigma nos alunos pobres e não brancos é permanecer em tempos de República Velha, quando o analfabetismo da maioria dos ex-escravos era a justificativa para que lhes fosse negado o direito ao voto.

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