sábado, 12 de novembro de 2011

Medo


Um castelo no ar... livre de tanta pressão
Não poderei tocá-lo
Disto ambos sabemos
Mas quanta poesia
E gozo desperdiçados...
Não haveria nenhum grande poeta
Se a civilização fosse mesmo uma realidade
E você sabe o que fazemos o tempo todo
Brincamos de esconder tudo
Porque o objetivo é o que importa
E seu bairro, é um jardim
Enquanto o meu é um farrapo
Você sabe de onde vim
E sabe que não foi fácil alcançar sua casa
O Senado ...
Você sabe que  tentei, mas o Ocidente é nosso norte
E só em outro lugar teremos nosso tempo
Até lá, conte-me seus planos
Quanto fogo contra todos
Ah ... isto vale mesmo a pena.

DEUS DE NAPALM


Poderia tocar esta harpa
E poderia ver seu disco pulando
Enquanto invado a cidade
Pelos lados, pela noite, com fogo
Para matar seus povos, de olhos pequenos
Ou crenças antigas

Poderia tocar esta harpa e vê-lo subindo ao céu
Sob a explosão de meu comboio
Sugando suas mulheres
Os cavalos
Os campos
E tudo mais que posso levar

Nenhuma humilhação será esquecida
Soubemos disto quando ainda não ocupavas esta terra,
E comendo este pedaço de pão
Não imaginava que pássaros cospem fogo
Mas agora que já sabe,
Mas agora que já imagina nosso horror....
Feche os olhos diante de nossa passagem

Quando voamos baixo,
Enchendo suas narinas de  sais de alumínio,
Feche os olhos
Agora você já sabe, pássaros cospem fogo
Agora você já sabe
Nós acreditamos que nosso deus,
Deve circular entre seu povo
De mão em mão, de casa em casa
Pondo seus filhos de joelho.

sábado, 29 de outubro de 2011

A SOCIALITE E O USINEIRO




De jatinho sobre o Mato Grosso
Vem seu príncipe de mau gosto
Embalado pelo trabalho escravo
Será clicado na noite paulistana
Vestindo Terno Ricardo Almeida
Jantando no Chez Nohad nos Jardins

Vestido de noiva com bordado de pérolas
Ao meio dia, só para os amigos
De tudo o melhor pescado
Tudo doce, enjoativo
Buquê de três mil reais
Sapato com fios de ouro

Lá vem o usineiro Bisneto
E a socialite apaixonada
Lá vem sua mãe toda de azul,
Rindo como pirata que encontra tesouro

E ao cortar o bolo...
Jorra caldo de cana vermelho
Pedaços de mãos e olhos saltam
Sobre a platéia horrorizada

Gritam pelos empregados
Mas ninguém aparece
As mulheres rolam pelo chão, fugindo da festa
E o casal desesperado,
Envolvido pela substância doce e vermelha,
Despenca sobre a mesa de doces finos
Lá vem o usineiro e a socialite.
  

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

O ESTUDIOSO DE ENGUIAS


A pedra
A musa
A falta         
Não dita
O desejo
Invenção dos sonhos,
Solidão coroada pelos santos

Ele me punia porque me vendo sorrir
Achava meu sorriso excessivo
E gritava ao mundo
Que sua beleza era a palavra
E que meu exagero destruía seu apetite

Era tudo tão rápido
Como um espirro
Um aperto de mão entre atletas rivais
O olhar de um poeta para a tela vazia

Era tudo tão rápido
Que eu já nem sabia o que era
Se ficasse, seria musa?
Se partisse, seria Maria?

Mais uma vez nas escadas
Na mesma lama dos sonhos
Mais uma vez, e agora ainda mais tarde
A pedra
A falta
Não dita

NÉVOA


E por dias você pode ter esperado,
Com as melhores rosas, sobre a montanha
O corpo varrido por fantasias
De encontro e movimentos doces

Por dias, esperando um barco
Avermelhado
De cores fortes
A toda aquela força
Seria sua tempestade

Nem memória
Nem dor
Nem espada
Nem sonho

Nenhum dos desejos
Cansada
Morta
Triste
Torta
Esquece

E ergue outra história

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

A MORTE DE PENÉLOPE


Lentamente ela começou o preparo
Dos perfumes, das danças e das memórias
A cada dia, tecia sua colcha de desejos
Não mais de espera,
Nem de guerra.

Na estrada, ele sorria, falava e contava casos aos viajantes
Era seguro ir por ali ao seu lado
Grande, altivo e bondoso

Mas suas memórias criaram formas em fogo
Cresciam, harmonizavam sua face
Escondiam suas tramas
Duplicavam seu sexo e negavam a voz de seu amor

E ela dançou furiosamente
Porque havia vida demais para queimar
E a terra apenas consumia seus sonhos

terça-feira, 12 de julho de 2011

HELENA



Os poetas, anos, décadas, a mesma melodia
Mas por que não se cansam?

Acontece que não há boca tamanha
Para contar as pérolas do mar
Nem passado que possa ser sepultado
Diante dos olhos de água-esmeralda

Minha musa, feita assim,
De vacilantes acordes marítimos

Pescador, náufrago, capitão
Marujo.

Mesmo sonho de abraçar-te
Sempre longe, sempre longe

Nunca mais o conto de teus olhos
Nunca mais a cor de teus olhos

Cansa-me o passado e suas musas
Feitiço tolo, serei Ulisses.

Não me fale de suas despedidas
Não te falarei das minhas,

Seja assim, polidez
Civilização, tijolo entre nós
Brasília.

Nunca mais...
Nunca mais....

segunda-feira, 11 de julho de 2011

AMAZÔNIA


Naquele momento a multidão vibrou
Estava viva,
Cansada
Atônita
Incrédula

Atrás, pela frente, escorregando
Gastando o pouco que tinha
Mirando o ponto verde
Viva
Colorida
Relaxada
Ansiosa
Animada

Olhando, olhando e salpicando palavras
Vá,Pegue,Arraste, Jogue
Atrás, pela frente, escorregando,

Pelo céu iam as duas – rodopios-rodopios
Galopando contra o vento,
Uma de rosa, outra de preto,
Ambas em rápidos movimentos
Zaz, caía mais uma mecha de cabelo.
Zaz, rolava o aro de um óculos
Zaz, os livros rolaram pelo gramado,

Iam as duas, uma de rosa, outra de preto,
Girando com as mãos,
Zaz, riscavam os céus com seus gritos
Nem Atena, nem Perséfone.
Era carne, batalha, miragem,

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Estrada




De pouco ou nada se faz um pedaço de terra,
Mas para arar, para dar grão, braço e fogo,
É preciso vontade.

Vontade de chicote não é vontade.

De letras e quadro se faz o alfabeto
Mas para ver, lente, voz e palavra,
É preciso vontade

Vontade de castigo, não é vontade

De lua, imaginação e cadernos se faz a tese
Mas se eles usam viseiras,
E ensinam tolices,
O que exigir do aprendiz?

O poeta sempre está fora,
Vendo bolhas ao redor das bocas fechadas
Achando graça no olhar sisudo dos mestres
Perdendo-se nos verdes anos,

E sua alma toma formatos inusitados,
Podemos achá-los atrás dos guichês de bancos,
Espantá-los nos pontos de ônibus,
Espremê-los nos cargos da administração
Socorrê-los nos hospitais

Que glória teria o rapazinho tão jovem,
Já acostumado a cortejar gordos coronéis?
Que glória e talento eles têm?

Presos aos pedaços de terra, do sul mais distante
De uma terra tão quente.
Desfeitos de memória, de casos, de farpas
Levantando bandeiras vermelhas
E bolas, e passes, e máquinas
Que a nenhum poeta interessam.
 

terça-feira, 21 de junho de 2011

Elegia da cidade amada




O que é preciso para o novo sol, o novo raio,
Da pedreira, castelo de areia,
Da certeza, dia parado,
Telefones cortados,
Comissões de frente sem água, sem cor e sem som,

O que é preciso para fazer do rio,
Francisco, Tejo, Paraíba,
Mais que álcool de usina
Mais que ferida e fuligem?

Da serra o mesmo riso gordo e pachorrento,
Do cerrado, gado escondido no pasto
Do litoral, casa fechada, para uso oficial
Segue José, segue Moacir, segue Luiz.
Segue Pedro, segue Sérgio e Eduardo...

Do cimento rapidamente tratado
Os buracos que explodem pela cidade,
Canhões de luz que não são parte do espetáculo, em qualquer rua...
Mandando operários pelos ares,
Rio de Janeiro, 2.1 fim de linha
Cadeira vazia,
Empresa de máscaras

segunda-feira, 20 de junho de 2011

DE CIMA SOB O FOGO




De um lado, a foto estampada do jovem doutor de taças
De outro lado, a alegria do caboclo, em seu terreiro de dança
Na mesma tarde, a barriga do comerciante, na praça lotada
E a mãe preocupada com seu pequeno filho distante

No meio de tudo,o vigilante, que com o contador, cuida do prédio
Na sala de espera, senhoras, com óculos gigantescos de ver novela

No consultório, a dona da história que entre glórias e crimes, fez fortuna
E no andar de baixo, o pasteleiro,
E logo a frente a praça, por onde passamos todos.

No alto do alto do centro da cidade, o presidente
Da comunidade científica
Artífice  de rodas mágicas e nomeações secretas

E a frente, novamente, a estrada
Dos sonhos, do desejo, dos atropelos, dos encontros
Das trombadas
Dos ganhos
Das horas de estranha agonia
Dos sábados
Das cópias de vida vivida

E se não era assim antes,
É porque não víamos
Nada se revelou.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

cartilhas



Tem algo nos escapando nesta história toda. E este escape é perigoso, tem favorecido tipos como Bolsonaro, contribui para aumento da violência. E apostar que o veto à cartilha é o mais grave, é deixar-se levar pelo impressionismo. ESta crença na educação para respeito e tolerância não mais me convence. É algo em que um teórico alemão como Habermas pode acreditar. Mas no Brasil, nas escolas do Rio de Janeiro ou de outros Estados, querem saber como isto acaba?
Lembrem da obrigatoriedade da História da África nas escolas e toda reação intolerante que tem gerado. Acirra o estigma sobre quem freqüenta, sobre o professor que banca a idéia, acirra os ânimos e gera perseguições.
É possível acreditar que nosso professor, na sua missão de segurar um Estado que não investe em educação, possa segurar os efeitos destas políticas? È possível cobrar dele que o faça? Sozinho na sala de aula?
É como deixar o aluno negro que entrou pelas cotas na UERJ, cair desmaiado de fome no corredor (o que houve de fato). e vir alguém dizer com todo o sarcasmo:
- Viu no que dá?
Se os movimentos sociais se enfraquecem, se dividem em disputas, deixam de estar com a base, deixarm de dialogar com instituições como a escola e se concentram em passar educação por cartilhas... o efeito daqui a um ano é o esquecimento, ou a gozação.
Eu trabalhei com formação de professores de todo o Brasil por dois anos: eles acreditam que a família heterossexual é a base da personalidade sadia. Diziam isto nas entrelinhas, mas diziam. Agitam-se os espíritos, muitos revelam seu grau elevado de intolerância.
A cartilha por si só, feita por especialistas, não tem o poder mágico de alterar absolutamente nada. E é perigoso não ver isto.
E entrar numa guerra contra a suspensão da cartilha é dar a bancada evangélica a oportunidade de ter espaço gratuito na mídia. Gente que nem sabia, apoiou a decisão. Portanto, mas do bradar, é preciso propor uma ação que não se resuma ao LAMENTAMOS MUITO...
De lamentos o país esta cheio: agricultores assassinados, ministros obscenos, universidades sem verba, desemprego mascarado de crescimento, esgoto que não chega com o PAC. E uma presidente que não sabe quando o ex-presidente chega a Brasília para apitar o governo.
Não sei se o conteúdo feito pelos especialistas é o melhor para as escolas. Esta concepção de que um especialista é o melhor profissional para isto não me convence. Em um treinamento da UERJ uma doutora em gênero do CLAM, disse
- Se a menina da favela quer ter 8 filhos, o corpo é dela, não devo legislar sobre isto.
É o tipo de relativismo que me assusta.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Cidade do Fogo

E ela disse "bom dia" ao entrar na sala. Teria ensaiado o tom como se fosse um menestrel, um brâmane. Sua cabeça cheia de ideias corria por "Um estranho no ninho", parava de frente para "Sérpico" e pensava sobre tomar e sitiar aquela sala.
De óculos, observaram sua performance. As lanças escondidas sob a manga. As mulheres com punhais, sorriram cordialmente.
Solicitou apresentações, falou de suas técnicas herdadas de antigos guerreiros.
Um deles tirou o óculos e apresentou uma enorme ficha com fotos: era um dossiê sobre sua vida.
Estava nua, via a ponta dos punhais brilharem contra a luz.
Proferiu a palavra democracia, ouviu uma rajada de tiros, viu cordas e salas fechadas, ouviu cantos.
Ousou a palavra transformação, ouviu passos no corredor, ouviu uma enfermeira abrindo a porta.
Outros tiraram os óculos e gritaram: Por que?
Era 1980? Era 2001?
Era 2011.
e mais uma vez, era a sua sala.

domingo, 10 de abril de 2011

Um retrato borrado não está a altura de Oscar Wilde



A complexidade do livro é transformada em uma narrativa que não ganha densidade dramática e portanto não "entramos" no filme. As opiniões de Lord Henry sobre as mulheres, retratadas como figuras superficiais, tediosas, apegadas ao passado, etc... demarca algo socialmente compartilhado e certamente, quem nos fala aqui é o próprio autor, piedoso da condição feminina. O filme não consegue nem de longe capturar a trama social onde está Dorian. “Mas você deve pensar nesta morte solitária em um camarim de mau gosto como um estranho fragmento sinistro de uma peça jacobina...” diz Lord Henry sobre a morte de Sybil, após lamentar que nenhuma mulher tenha feito o mesmo por ele. Esta atmosfera da atitude intelectualista “blasé” na qual L. Henry socializa o jovem Dorian, é perdida no filme. Pois o quadro se altera mas o personagem desfila sempre com seu sorriso de pedra. Lembrei de Eduard Norton um filme mediano, mas ótimo como entretenimento: O Ilusionista. As atuações tornam a história melhor do que ela é. Ilusões, paixões, um policial encantado com a mágica. Ótima fotografia. Mas é o avanço da trama que torna o filme digno. Em retrato de D. Gray temos o contrário. Uma grande história amassada, chapada, cortada, enfim, diminuída pela atuação dos personagens, mesmo que Lord Henry tenha uma língua afiada e nos envolva com suas tiradas.
O fato é que o uso intermitente de uma trilha sonora “exótica” e os cortes a la clip, acabam com o filme. As cenas ditas “sensuais” são mal dirigidas com um ator de olhos semi cerrados, tentando sem sucesso, mostrar enorme prazer, entre plumas, mulheres asiáticas, senhoras e mocinhas. Como tudo é feito com véus, sobreposições e movimentação rápida da câmera, você vê cenas de sexo no meio de vestidos, seios, corpos nus. Mas tudo é muito, muito higiênico e moralizado. O arrependimento de Dorian acaba com o filme, o personagem não cresce em complexidade. Parece um tolo que deu ouvidos a um homem maduro e corrompido e agora se arrepende de seus atos. O filme se arrasta, os diálogos que são o ouro de Wilde, são aqui desperdiçados e o cinismo de Harry é requentado. Sempre como um invejoso prestes e oferecer enxofre para o jovem tolo. Dorian não acontece, o filme é um arremedo.

domingo, 3 de abril de 2011

FARRAPO HUMANO DE 1946



Moralmente condenável, o alcoolismo é retaratado com um realismo único neste filme. "Tantos homens por aí com o mesmo problema, morrendo de sede, pelas ruas de N York"... Não o indivíduo mas a cidade, os desejos e a derrota. A companhia do álccol para os que não alcançaram a fama, o reconhecimento público. E são consumidos, consumindo a cidade.
Mais uma questão, para quem escreve ou busca a condição de artista (em sentido muito amplo)é o pânico da página em branco. Escrever uma tese ou um artigo: a primeira linha, a primeira página. Bloqueio, medo de reprovação, avvaliação de si mesmo. Este filme trabalha com tais questões. Billy Wilder diride The Lost Weekend e Ray Miland ganha com o filme, vários prêmios como melhor Ator. A indústria de bebidas oferece cinco milhôes de dólares para que a Paramount não realize o filme.

quarta-feira, 30 de março de 2011

para ler sociologia



indicando para leituras


http://tesedigital.blogspot.com/2007/11/bourdieu-pierre.html

terça-feira, 29 de março de 2011

Fazer viver e deixar morrer




Luciane Soares

Lendo o caderno cotidiano da Folha de São Paulo sobre a queima de mais de um milhão de cópias de boletins de ocorrência sobre mortes entre 1995 e 2000, lembrei de dois casos importantes para pensar sobre esta relação entre os dados produzidos pelo Estado e sua utilidade para pesquisa.

O primeiro caso ocorreu em 2000, quando integrei uma equipe de pesquisa na Secretaria de Justiça e Segurança do Estado do Rio Grande do Sul. Pesquisamos processos de adolescentes presos na Febem. Nosso objetivo era cruzar os dados, através de pesquisa quantitativa, entre estes processos e os do Sistema Prisional para Adultos. Duas questões merecem nota: a primeira refere-se à dificuldade de acesso aos processos. Só conseguimos driblar este problema depôs que pois o juiz Leoberto Narciso Brancher demonstrou simpatia à nossa pesquisa.

O complicador é que trabalhávamos com séries de processos da década de 90, o que gerava uma corrida contra o tempo. Trabalhamos no Arquivo Judicial de Porto Alegre, com luvas em meio a pilhas gigantes de processos já prontos para a incineração. A cada vez que isto acontecia, tínhamos o sentimento de perda de um importante dado, já que estes processos traziam dados sobre os pais, escolaridade, primeiras infrações, reincidência, moradia e atendimento interno nas unidades.

Como sequer eram micro-filmados, a cada vez que um era incinerado, deixávamos de saber o que tinha ocorrido na vida daquele adolescente que poderia ingressar no sistema prisional adulto. Trabalhávamos em pequenas mesas no canto das salas de audiência, registrando estas informações, e de certa forma, posso dizer, contra a vontade do Estado.

Lembro que os funcionários dos cartórios e próximos ao juiz não entendiam por que pesquisadores tinham interesse nos casos de gente que “não tinha mais saída”. Esta compreensão, compartilhada por funcionários com mais de 15 anos de ofício, colabora para a certeza de que certa quantidade de papel passa a ser vista como lixo. A comparação entre os papéis e as pessoas torna-se inevitável. Por que guardar a história de vidas que não interessam ao Estado?

O outro caso é oposto a este em termos do processo de arquivamento de informações. Quando, em 2001, decidi estudar os casos de racismo registrados nas delegacias do Estado do Rio Grande do Sul, o estudo só foi possível graças ao banco de dados informatizado da Policia Civil gaúcha. Eram mais de 1.500 casos de registros de delegacias em todas as cidades do Estado. Os registros iam desde simples brigas de trânsito até o caso de um professor de Caxias do Sul que, não temendo ser filmado, recusou-se a entregar o diploma à uma aluna negra em plena formatura.

Graças a este banco de dados, foi possível uma primeira tipificação do tipo de ocorrências envolvendo atos de preconceito registrados após a lei contra o racismo, da Constituição de 1988: era no ambiente de trabalho que a maioria acontecia, muitas vezes envolvendo algum grau de hierarquia, e a dificuldade do registro ocorria principalmente pela dificuldade em conseguir testemunhas. O trabalho de pesquisa dava subsídios para que ações anti-racistas pudessem ilustrar no cotidiano como estes casos eram mais comuns do que se imaginava. Mas, como muitas vezes a vítima acabava desistindo do caso, estas histórias de nossas interações sociais permaneciam lá, guardadas nas prateleiras de ferro das delegacias. E se fossem queimadas? Antes de serem arquivadas digitalmente?

Como pesquisadora, sinto-me profundamente triste com este tratamento dado pelo Estado de São Paulo. Não existe solução justa para estas perdas. Impossibilitam a mínima dignidade e justiça àqueles que foram vitimados muitas vezes pelo próprio Estado. Fica a questão trabalhada por Michel Foucault: fazer viver, ou como em São Paulo e outras grandes metrópoles,deixar morrer? E depois disto, de forma acidental, perder os registros destas mortes.

Universidade brasileira e democracia

Luciane Soares

Entre os índices de desigualdade brasileiros, o acesso ao ensino público de qualidade aparece como gerador de grandes polêmicas. Isto porque envolve movimentos sociais, profissionais da educação, alunos, pais, mídia e agentes importantes, incluindo entre os últimos o pernambucano Luiz Inácio Lula da Silva e o paulista Antônio Ermírio de Moraes, presidente e membro do conselho de administração do Grupo Votorantim. O assunto interessa a toda a nação, por razões evidentemente muito distintas, como podemos perceber, lendo a lista acima.

Argumentos são sacados para a discussão que tende a ser feita em bases por vezes precipitadas. Nos últimos dois anos, a comunidade acadêmica tem se dividido em frentes favoráveis e contrárias as cotas. O que tem gerado inimizades, rompimentos, livros, listas de assinaturas, blogs, brigas públicas, reuniões. Eventos que transcendem a questão de acesso ao ensino superior, focando a existência ou não de racismo no Brasil. Pois, para muitos, raça é atualmente, um conceito dispensável. Portanto, por que reserva de vagas?

Creio, como muitos outros pesquisadores, que socialmente, raça é um operador cotidiano de identificação poderoso. Convido todos a refletir sobre Obama e o significado de sua eleição. Alguma dúvida?

Se não se pode mais falar em raça, parece que o que existe é uma paranóia de movimentos sociais rancorosos e revanchistas, como afirmou um professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) em artigo recente sobre o ensino de História da África nas escolas.

Este fato me faz lembrar da crise de choro de uma avaliadora de importante agência de fomento à pesquisa no país que, diante da indagação de um professor de Lisboa (curioso por nossa Universidade) não conseguia explicar aos presentes por quais razões, no Brasil, os negros eram praticamente inexistentes nas universidades.

A discussão corajosa e por vezes solitária que o professor da Universidade de Brasília (UnB) José Jorge de Carvalho tem feito, colabora para pensar sobre o caso. Dos universitários brasileiros, 96% são brancos.

Poderíamos problematizar como estas classificações são feitas. Mas é desnecessário. Basta pensar na configuração racial dos cursos de Engenharia, Direito, Arquitetura e Medicina. Mesmo que fosse possível dizer, abraçados a Gilberto Freyre, que no Brasil só há morenos, é inegável que existe sim, homogeneidade racial nas Universidades. Em toda minha graduação não tive a oportunidade de conviver com colegas negros.

A sutileza dos sobrenomes sempre foi cruel. Assim como os rituais de humilhação impostos quando a discussão de mérito era critério para aprovação em concursos públicos (parcialmente públicos, parcialmente secretos e obscuros).

Como não se pode falar do que não existe, ocorre a perpetuação destes rituais. No mestrado, a mesma distribuição: em dez alunos, apenas uma era negra. O que dizer diante de uma história sobre "aquela empregada doméstica negra que foi despedida porque comeu um pedaço de bolo"? O que fazer diante de uma banca de avaliação que não sabia explicar por que um aluno, com notas superiores a 8,5 na prova aula, na entrevista e no currículo ocupa um pífio quinto lugar em um concurso para professor? Tendo notas superiores aos demais candidatos. Questão de mérito? Falta de qualificação? Não seria justo, uma vez que os avaliadores bocejavam durante a prova aula. Para quem narrar estes fatos "fantasiosos e rancorosos"? Poderia alguém dizer que trata-se de uma paranóia? Não creio.

Acredito que a discussão sobre cotas explode com este silêncio universal que em seu caráter falsamente democrático, apenas perpetua poderes há décadas estabelecidos. Quanto ao argumento de "baixar o nível" com a entrada de alunos pobres e negros, convido toda a sociedade civil brasileira a investigar o conhecimento que se tem produzido nas teses, dissertações e artigos.

Creio que se alguém quiser seguir empunhando a bandeira da excelência acadêmica e do mérito, deverá analisar com seriedade o que tem se plasmado como interesse científico nos centros de pesquisa universitária. Verá logo que este argumento é falacioso. Há muito não é possível produzir como se deveria para, de fato, exibir esta excelência.

A obrigatoriedade da produção de artigos (por vezes repetidos em 10 revistas científicas), o sucateamento do serviço público, a falta de investimentos sérios em educação, isto sim, faz despencar o nível de qualquer instituição. Colocar esta culpa e este estigma nos alunos pobres e não brancos é permanecer em tempos de República Velha, quando o analfabetismo da maioria dos ex-escravos era a justificativa para que lhes fosse negado o direito ao voto.

Porque todos amam Obama?

Lá por setembro de 2006, escrevi para a Tribuna da Imprensa um artigo publicado em duas partes. Seu título era sugestivo pois brincava com um famosos filme de Denys Arcand, que tratava de relacionamentos humanos. Na época. A eleição não estava ganha e Obama era um forte e carismático candidato que chamei de herói americano. Bem, estamos em março de 2009 e tenho revista cenas de campanha, principalmente da mídia estadunidense com a intenção de entender o fenômeno Obama.
Este texto nasce de uma imagem (afinal, elas governam nossas vidas não é mesmo?):Obama bebe uma cerveja com a elegância irresistível que desfila publicamente em jogo do Chicago Bulls. No mesmo dia, tropas norte-americanas aparecem treinando soldados afegãos com dificuldade em outra imagem. Não me interessa levantar idéias sobre um plano arquitetado pela Cia que consistira em dar ao povo um negro “ que se parece com todos” enquanto ruma sobre o petróleo alheio. Não, esta seria uma visão paranóica de uma democracia ocidental consolidada. O fato é que Obama, dançou, cantou e fez piadas sobre os mais diversos assuntos. A palavra de ordem em Washington é “ he is cool, very cool”. Ou seja, ele é jovem, ele dança, ele é elegante. Bem, não podemos dizer que está sozinho. O presidente Sarkozy conta com importante trunfo, neste caso, a primeira dama, Carla Bruni, atriz, pop star e tão bela que durante muito tempo dizia-se ser ela o principal atrativo do governo francês.
Desta forma espetacular, mantemos as bilheterias altas nos bilionários (acho que ainda é pouco dizer isto) canais de televisão. O presidente é espetacular e diante deste fato que cega, a guerra parece irreal. Fantástica inversão: a guerra que é real e ocorre a golpes largos, parece uma ficção, o presidente, esculpido como uma mistura de Humphrey Bogart multicultural e Ted Kennedy, segue cumprindo exemplarmente um dos legados culturais que os Estados Unidos da América deram ao mundo: a industria das celebridades.

Declínio do Império Americano (I)

Luciane Soares

O jovem aristocrata francês Aléxis de Tocqueville ofertou ao mundo uma visão apaixonada sobre a nação norte-americana em "Da democracia na América", obra editada em 1835 e clássico absoluto da política (teórica e prática). A percepção de uma sociedade ávida por participação e igualdade funcionou como poderosa ferramenta para a construção de uma idéia de nação democrática, arrojada, na qual o cidadão comum era conectado às arenas decisórias de poder.

É preciso frisar que a complexidade desta democracia (ou mais precisamente a contradição existente e não enfrentada com profundidade pelo jovem Tocqueville) reside no fato de ter construído sua hegemonia econômica sob o uso de regime escravo. Uma sociedade para o cidadão anglo-saxão, outra sociedade para o escravo africano. Cindida exatamente aí, esta nação atingiu sua "maturidade" sem resolver um dos problemas mais deprimentes do século XX: a perpetuação do racismo e de todas as desigualdades geradas em função destas divisões.

Mas como nação dos sonhos, mesmo com a violência institucionalizada contra os negros (e depois hispânicos), algumas condições propiciaram a formação de comunidades negras capazes de inserção nas arenas de discussão, capazes de produzir líderes políticos da envergadura de Martim Luther King e Malcom X, para ficar no quesito "capacidade individual". Quanto ao poder de organização do grupo, o movimento pelos direitos civis representa um marco mundial para repensar o lugar dos povos da diáspora africana. Portanto, um movimento que inspirou ações políticas para além da América bi-racial.

O mundo mudou, dizem especialistas, pesquisadores, políticos, publicitários. Enfim, o "novo" é um dos signos mais antigos e eficazes para a mobilização das massas em períodos eleitorais. Lembremos para todo o sempre do caçador de marajás, jovem, carismático. Lembremos que o mote da campanha de Lula em 2002 era a mesma palavra que agora mobiliza jovens no país todo para votar em Obama: a esperança.

Falar que o candidato negro, jovem, formado em direito, filho de um economista queniano e de uma norte-americana branca, criado pelos avós longe do gueto, Barack Obama Jr., representa a mudança, o novo, não nos diz muito. Muito tem sido dito sobre suas aptidões para conciliar as posições mais opostas. Muito tem sido dito sobre sua retórica. Ao mesmo tempo em que conclama a nação para a reconstrução, Obama é um dos resultados mais fantásticos do que Guy Debord chama de "sociedade do espetáculo".

Vejamos: Obama é negro, mas isto não o identifica como "um candidato negro para os negros". Seu biógrafo, David Mendell, refere-se ao senador pelo estado pelo llinois (norte dos EUA) como "ambicioso". Além disto, assegura que Obama realmente acredita que representa a mudança. Em sua plataforma de campanha, não há uma palavra sobre raça. Como sempre é ressaltado, ele é um conciliador. Ele é capaz de preocupar-se com os veteranos de guerra e com a melhoria do sistema escolar, além de ser defensor de uma política de erradicação da corrupção em Washington.

Sua imagem de primeiro presidente negro dos Estados Unidos só faz sentido porque um país que viu a ação de líderes como King, Malcom X e os Panteras Negras, um país que sente nas veias a divisão racial, tem sua subjetividade marcada por uma idéia explícita: o sonho americano não é para todos que vivem na América. O significado do apoio a Obama não reside apenas no fato de suas credenciais serem novas. O fato mais importante é que seu discurso inflamado, sua biografia peculiar, sua ascensão mítica, fazem dele um candidato performático, midiático, capaz de alavancar o mercado editorial norte-americano com mais de cinco títulos sobre sua vida, além dos livros escritos por ele sobre seus sonhos e esperanças. Mais do que representar o fim da era neo-conservadora iniciada com Ronald Reagan, Obama representa a si próprio. Representando a si próprio, representa o individualismo que marca o fim das utopias pós-68 e uma geração voltada para carreira. Obama conjuga isto e aparece como um tipo ideal de liderança carismática no sentido weberiano. Se os valores mudaram (cambiaram me parece uma expressão ainda melhor para o fenômeno no caso específico de Obama) e os indivíduos já não se orientam por ideologias marxistas, feministas, racistas, etc... então o bordão é correto: ele é o candidato certo, para o momento certo. A tendência já observada na candidatura de Nicolas Sarkozy em tratar política e vida pessoal nas páginas de revistas de celebridades, faz da trajetória de Obama, um caso irresistível para a construção de um mito moderno, amparado na imagem igualmente irresistível de potência e sucesso. Diante de uma recessão econômica brutal, da incapacidade de ofertar saúde digna à população e do desmoronamento do inexpressivo presidente George W. Busch “filho”, Obama angaria simpatias de intelectuais, grandes capitalistas, imigrantes, artistas. No Brasil, conhecemos na prática este caminho. É curioso acreditar que esta mudança possa favorecer os negros em New Orleans e o bilionário liberal Warren Buffett. Ao representar esta frente infinitamente ampla, a melhor definição para corroborar a tese de que Obama é resultado de uma sociedade consumida pelo espetáculo, só poderia vir de um cineasta: George Lucas refere-se a Obama como “herói americano”. Portanto, a saga dos desbravadores, jovens destemidos, colonizadores do mundo e dos outros mundos que virão, segue agora na figura multicultural, moderna de um homem negro.É reconhecida mundialmente a vocação da América para produção de heróis, cuja honra e coragem aparecem como virtudes capazes de superar qualquer obstáculo. E nisto, nada há de novo.