quarta-feira, 30 de março de 2011

para ler sociologia



indicando para leituras


http://tesedigital.blogspot.com/2007/11/bourdieu-pierre.html

terça-feira, 29 de março de 2011

Fazer viver e deixar morrer




Luciane Soares

Lendo o caderno cotidiano da Folha de São Paulo sobre a queima de mais de um milhão de cópias de boletins de ocorrência sobre mortes entre 1995 e 2000, lembrei de dois casos importantes para pensar sobre esta relação entre os dados produzidos pelo Estado e sua utilidade para pesquisa.

O primeiro caso ocorreu em 2000, quando integrei uma equipe de pesquisa na Secretaria de Justiça e Segurança do Estado do Rio Grande do Sul. Pesquisamos processos de adolescentes presos na Febem. Nosso objetivo era cruzar os dados, através de pesquisa quantitativa, entre estes processos e os do Sistema Prisional para Adultos. Duas questões merecem nota: a primeira refere-se à dificuldade de acesso aos processos. Só conseguimos driblar este problema depôs que pois o juiz Leoberto Narciso Brancher demonstrou simpatia à nossa pesquisa.

O complicador é que trabalhávamos com séries de processos da década de 90, o que gerava uma corrida contra o tempo. Trabalhamos no Arquivo Judicial de Porto Alegre, com luvas em meio a pilhas gigantes de processos já prontos para a incineração. A cada vez que isto acontecia, tínhamos o sentimento de perda de um importante dado, já que estes processos traziam dados sobre os pais, escolaridade, primeiras infrações, reincidência, moradia e atendimento interno nas unidades.

Como sequer eram micro-filmados, a cada vez que um era incinerado, deixávamos de saber o que tinha ocorrido na vida daquele adolescente que poderia ingressar no sistema prisional adulto. Trabalhávamos em pequenas mesas no canto das salas de audiência, registrando estas informações, e de certa forma, posso dizer, contra a vontade do Estado.

Lembro que os funcionários dos cartórios e próximos ao juiz não entendiam por que pesquisadores tinham interesse nos casos de gente que “não tinha mais saída”. Esta compreensão, compartilhada por funcionários com mais de 15 anos de ofício, colabora para a certeza de que certa quantidade de papel passa a ser vista como lixo. A comparação entre os papéis e as pessoas torna-se inevitável. Por que guardar a história de vidas que não interessam ao Estado?

O outro caso é oposto a este em termos do processo de arquivamento de informações. Quando, em 2001, decidi estudar os casos de racismo registrados nas delegacias do Estado do Rio Grande do Sul, o estudo só foi possível graças ao banco de dados informatizado da Policia Civil gaúcha. Eram mais de 1.500 casos de registros de delegacias em todas as cidades do Estado. Os registros iam desde simples brigas de trânsito até o caso de um professor de Caxias do Sul que, não temendo ser filmado, recusou-se a entregar o diploma à uma aluna negra em plena formatura.

Graças a este banco de dados, foi possível uma primeira tipificação do tipo de ocorrências envolvendo atos de preconceito registrados após a lei contra o racismo, da Constituição de 1988: era no ambiente de trabalho que a maioria acontecia, muitas vezes envolvendo algum grau de hierarquia, e a dificuldade do registro ocorria principalmente pela dificuldade em conseguir testemunhas. O trabalho de pesquisa dava subsídios para que ações anti-racistas pudessem ilustrar no cotidiano como estes casos eram mais comuns do que se imaginava. Mas, como muitas vezes a vítima acabava desistindo do caso, estas histórias de nossas interações sociais permaneciam lá, guardadas nas prateleiras de ferro das delegacias. E se fossem queimadas? Antes de serem arquivadas digitalmente?

Como pesquisadora, sinto-me profundamente triste com este tratamento dado pelo Estado de São Paulo. Não existe solução justa para estas perdas. Impossibilitam a mínima dignidade e justiça àqueles que foram vitimados muitas vezes pelo próprio Estado. Fica a questão trabalhada por Michel Foucault: fazer viver, ou como em São Paulo e outras grandes metrópoles,deixar morrer? E depois disto, de forma acidental, perder os registros destas mortes.

Universidade brasileira e democracia

Luciane Soares

Entre os índices de desigualdade brasileiros, o acesso ao ensino público de qualidade aparece como gerador de grandes polêmicas. Isto porque envolve movimentos sociais, profissionais da educação, alunos, pais, mídia e agentes importantes, incluindo entre os últimos o pernambucano Luiz Inácio Lula da Silva e o paulista Antônio Ermírio de Moraes, presidente e membro do conselho de administração do Grupo Votorantim. O assunto interessa a toda a nação, por razões evidentemente muito distintas, como podemos perceber, lendo a lista acima.

Argumentos são sacados para a discussão que tende a ser feita em bases por vezes precipitadas. Nos últimos dois anos, a comunidade acadêmica tem se dividido em frentes favoráveis e contrárias as cotas. O que tem gerado inimizades, rompimentos, livros, listas de assinaturas, blogs, brigas públicas, reuniões. Eventos que transcendem a questão de acesso ao ensino superior, focando a existência ou não de racismo no Brasil. Pois, para muitos, raça é atualmente, um conceito dispensável. Portanto, por que reserva de vagas?

Creio, como muitos outros pesquisadores, que socialmente, raça é um operador cotidiano de identificação poderoso. Convido todos a refletir sobre Obama e o significado de sua eleição. Alguma dúvida?

Se não se pode mais falar em raça, parece que o que existe é uma paranóia de movimentos sociais rancorosos e revanchistas, como afirmou um professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) em artigo recente sobre o ensino de História da África nas escolas.

Este fato me faz lembrar da crise de choro de uma avaliadora de importante agência de fomento à pesquisa no país que, diante da indagação de um professor de Lisboa (curioso por nossa Universidade) não conseguia explicar aos presentes por quais razões, no Brasil, os negros eram praticamente inexistentes nas universidades.

A discussão corajosa e por vezes solitária que o professor da Universidade de Brasília (UnB) José Jorge de Carvalho tem feito, colabora para pensar sobre o caso. Dos universitários brasileiros, 96% são brancos.

Poderíamos problematizar como estas classificações são feitas. Mas é desnecessário. Basta pensar na configuração racial dos cursos de Engenharia, Direito, Arquitetura e Medicina. Mesmo que fosse possível dizer, abraçados a Gilberto Freyre, que no Brasil só há morenos, é inegável que existe sim, homogeneidade racial nas Universidades. Em toda minha graduação não tive a oportunidade de conviver com colegas negros.

A sutileza dos sobrenomes sempre foi cruel. Assim como os rituais de humilhação impostos quando a discussão de mérito era critério para aprovação em concursos públicos (parcialmente públicos, parcialmente secretos e obscuros).

Como não se pode falar do que não existe, ocorre a perpetuação destes rituais. No mestrado, a mesma distribuição: em dez alunos, apenas uma era negra. O que dizer diante de uma história sobre "aquela empregada doméstica negra que foi despedida porque comeu um pedaço de bolo"? O que fazer diante de uma banca de avaliação que não sabia explicar por que um aluno, com notas superiores a 8,5 na prova aula, na entrevista e no currículo ocupa um pífio quinto lugar em um concurso para professor? Tendo notas superiores aos demais candidatos. Questão de mérito? Falta de qualificação? Não seria justo, uma vez que os avaliadores bocejavam durante a prova aula. Para quem narrar estes fatos "fantasiosos e rancorosos"? Poderia alguém dizer que trata-se de uma paranóia? Não creio.

Acredito que a discussão sobre cotas explode com este silêncio universal que em seu caráter falsamente democrático, apenas perpetua poderes há décadas estabelecidos. Quanto ao argumento de "baixar o nível" com a entrada de alunos pobres e negros, convido toda a sociedade civil brasileira a investigar o conhecimento que se tem produzido nas teses, dissertações e artigos.

Creio que se alguém quiser seguir empunhando a bandeira da excelência acadêmica e do mérito, deverá analisar com seriedade o que tem se plasmado como interesse científico nos centros de pesquisa universitária. Verá logo que este argumento é falacioso. Há muito não é possível produzir como se deveria para, de fato, exibir esta excelência.

A obrigatoriedade da produção de artigos (por vezes repetidos em 10 revistas científicas), o sucateamento do serviço público, a falta de investimentos sérios em educação, isto sim, faz despencar o nível de qualquer instituição. Colocar esta culpa e este estigma nos alunos pobres e não brancos é permanecer em tempos de República Velha, quando o analfabetismo da maioria dos ex-escravos era a justificativa para que lhes fosse negado o direito ao voto.

Porque todos amam Obama?

Lá por setembro de 2006, escrevi para a Tribuna da Imprensa um artigo publicado em duas partes. Seu título era sugestivo pois brincava com um famosos filme de Denys Arcand, que tratava de relacionamentos humanos. Na época. A eleição não estava ganha e Obama era um forte e carismático candidato que chamei de herói americano. Bem, estamos em março de 2009 e tenho revista cenas de campanha, principalmente da mídia estadunidense com a intenção de entender o fenômeno Obama.
Este texto nasce de uma imagem (afinal, elas governam nossas vidas não é mesmo?):Obama bebe uma cerveja com a elegância irresistível que desfila publicamente em jogo do Chicago Bulls. No mesmo dia, tropas norte-americanas aparecem treinando soldados afegãos com dificuldade em outra imagem. Não me interessa levantar idéias sobre um plano arquitetado pela Cia que consistira em dar ao povo um negro “ que se parece com todos” enquanto ruma sobre o petróleo alheio. Não, esta seria uma visão paranóica de uma democracia ocidental consolidada. O fato é que Obama, dançou, cantou e fez piadas sobre os mais diversos assuntos. A palavra de ordem em Washington é “ he is cool, very cool”. Ou seja, ele é jovem, ele dança, ele é elegante. Bem, não podemos dizer que está sozinho. O presidente Sarkozy conta com importante trunfo, neste caso, a primeira dama, Carla Bruni, atriz, pop star e tão bela que durante muito tempo dizia-se ser ela o principal atrativo do governo francês.
Desta forma espetacular, mantemos as bilheterias altas nos bilionários (acho que ainda é pouco dizer isto) canais de televisão. O presidente é espetacular e diante deste fato que cega, a guerra parece irreal. Fantástica inversão: a guerra que é real e ocorre a golpes largos, parece uma ficção, o presidente, esculpido como uma mistura de Humphrey Bogart multicultural e Ted Kennedy, segue cumprindo exemplarmente um dos legados culturais que os Estados Unidos da América deram ao mundo: a industria das celebridades.

Declínio do Império Americano (I)

Luciane Soares

O jovem aristocrata francês Aléxis de Tocqueville ofertou ao mundo uma visão apaixonada sobre a nação norte-americana em "Da democracia na América", obra editada em 1835 e clássico absoluto da política (teórica e prática). A percepção de uma sociedade ávida por participação e igualdade funcionou como poderosa ferramenta para a construção de uma idéia de nação democrática, arrojada, na qual o cidadão comum era conectado às arenas decisórias de poder.

É preciso frisar que a complexidade desta democracia (ou mais precisamente a contradição existente e não enfrentada com profundidade pelo jovem Tocqueville) reside no fato de ter construído sua hegemonia econômica sob o uso de regime escravo. Uma sociedade para o cidadão anglo-saxão, outra sociedade para o escravo africano. Cindida exatamente aí, esta nação atingiu sua "maturidade" sem resolver um dos problemas mais deprimentes do século XX: a perpetuação do racismo e de todas as desigualdades geradas em função destas divisões.

Mas como nação dos sonhos, mesmo com a violência institucionalizada contra os negros (e depois hispânicos), algumas condições propiciaram a formação de comunidades negras capazes de inserção nas arenas de discussão, capazes de produzir líderes políticos da envergadura de Martim Luther King e Malcom X, para ficar no quesito "capacidade individual". Quanto ao poder de organização do grupo, o movimento pelos direitos civis representa um marco mundial para repensar o lugar dos povos da diáspora africana. Portanto, um movimento que inspirou ações políticas para além da América bi-racial.

O mundo mudou, dizem especialistas, pesquisadores, políticos, publicitários. Enfim, o "novo" é um dos signos mais antigos e eficazes para a mobilização das massas em períodos eleitorais. Lembremos para todo o sempre do caçador de marajás, jovem, carismático. Lembremos que o mote da campanha de Lula em 2002 era a mesma palavra que agora mobiliza jovens no país todo para votar em Obama: a esperança.

Falar que o candidato negro, jovem, formado em direito, filho de um economista queniano e de uma norte-americana branca, criado pelos avós longe do gueto, Barack Obama Jr., representa a mudança, o novo, não nos diz muito. Muito tem sido dito sobre suas aptidões para conciliar as posições mais opostas. Muito tem sido dito sobre sua retórica. Ao mesmo tempo em que conclama a nação para a reconstrução, Obama é um dos resultados mais fantásticos do que Guy Debord chama de "sociedade do espetáculo".

Vejamos: Obama é negro, mas isto não o identifica como "um candidato negro para os negros". Seu biógrafo, David Mendell, refere-se ao senador pelo estado pelo llinois (norte dos EUA) como "ambicioso". Além disto, assegura que Obama realmente acredita que representa a mudança. Em sua plataforma de campanha, não há uma palavra sobre raça. Como sempre é ressaltado, ele é um conciliador. Ele é capaz de preocupar-se com os veteranos de guerra e com a melhoria do sistema escolar, além de ser defensor de uma política de erradicação da corrupção em Washington.

Sua imagem de primeiro presidente negro dos Estados Unidos só faz sentido porque um país que viu a ação de líderes como King, Malcom X e os Panteras Negras, um país que sente nas veias a divisão racial, tem sua subjetividade marcada por uma idéia explícita: o sonho americano não é para todos que vivem na América. O significado do apoio a Obama não reside apenas no fato de suas credenciais serem novas. O fato mais importante é que seu discurso inflamado, sua biografia peculiar, sua ascensão mítica, fazem dele um candidato performático, midiático, capaz de alavancar o mercado editorial norte-americano com mais de cinco títulos sobre sua vida, além dos livros escritos por ele sobre seus sonhos e esperanças. Mais do que representar o fim da era neo-conservadora iniciada com Ronald Reagan, Obama representa a si próprio. Representando a si próprio, representa o individualismo que marca o fim das utopias pós-68 e uma geração voltada para carreira. Obama conjuga isto e aparece como um tipo ideal de liderança carismática no sentido weberiano. Se os valores mudaram (cambiaram me parece uma expressão ainda melhor para o fenômeno no caso específico de Obama) e os indivíduos já não se orientam por ideologias marxistas, feministas, racistas, etc... então o bordão é correto: ele é o candidato certo, para o momento certo. A tendência já observada na candidatura de Nicolas Sarkozy em tratar política e vida pessoal nas páginas de revistas de celebridades, faz da trajetória de Obama, um caso irresistível para a construção de um mito moderno, amparado na imagem igualmente irresistível de potência e sucesso. Diante de uma recessão econômica brutal, da incapacidade de ofertar saúde digna à população e do desmoronamento do inexpressivo presidente George W. Busch “filho”, Obama angaria simpatias de intelectuais, grandes capitalistas, imigrantes, artistas. No Brasil, conhecemos na prática este caminho. É curioso acreditar que esta mudança possa favorecer os negros em New Orleans e o bilionário liberal Warren Buffett. Ao representar esta frente infinitamente ampla, a melhor definição para corroborar a tese de que Obama é resultado de uma sociedade consumida pelo espetáculo, só poderia vir de um cineasta: George Lucas refere-se a Obama como “herói americano”. Portanto, a saga dos desbravadores, jovens destemidos, colonizadores do mundo e dos outros mundos que virão, segue agora na figura multicultural, moderna de um homem negro.É reconhecida mundialmente a vocação da América para produção de heróis, cuja honra e coragem aparecem como virtudes capazes de superar qualquer obstáculo. E nisto, nada há de novo.